16 de dezembro de 2008

Sounds like a melody

Em casa da minha avó não havia árvore nem Pai Natal. Nos primeiros dias de Dezembro lá íamos, eu a Cremilde, o meu tio Joseph e o meu primo Carlos apanhar musgo para no canto da sala ao pé da lareira, fazer o Presépio, coisa que levava sempre, pelo menos, um dia inteirinho, entre o escolher o musgo certo, as pedras, pedregulhos, pedrinhas, troncos, ramos de sobro, pedaços de cortiça, ramos de oliveira e um sem numero de merdices que eles lá resolviam recolher. Até ao empilhar da coisa e do colocar as figuras no sitio certo, no fim e só depois do aval da minha avó se colocavam Maria e José à espera do menino que só chegava à uma da manhã do dia 26, depois da missa do galo.

Eram dias de fartura esses, a Cremilde tinha sempre rabanadas, filhoses e coscorões, e de manhã podia-se beber café ao pequeno almoço. O galo engordava na capoeira sem saber o que o esperava e o meu avô engordava na sala sabendo exactamente o que o esperava.

Todos os anos o tio Augusto, irmão mais novo da minha avó, vinha passar o Natal, solteiríssimo e na flor da idade, como ele próprio costumava dizer.

Trazia sempre novidades, ora um brinquedo novo ainda por lançar em Portugal, ora uma guloseima que ainda ninguém tinha visto, era sempre algo que me maravilhava por ser único e por ser para mim. Nunca se esquecia, assim que pousava a mala no hall a primeira coisa que fazia depois de ir pedir a benção à mana era ir procurar-me com o embrulho na mão. Ficávamos então horas a fio com ele a contar-me por onde tinha andado nesse ultimo ano, que países visitara e as aventuras que tivera enquanto adido cultural de Portugal no estrangeiro. Preparava-se para Junho do próximo ano a adesão de Portugal à CEE, e ele tinha andado num corropio pelos países membros a preparar a dita adesão.

A minha avó é que não achava muita piada ao facto de ele andar metido nessas coisas da politica, até porque andava lá metido como "Bochechas" e ela não gostava nada do "Bochechas". Já o meu avô achava que sim porque a minha avó achava que não. Mas depois lá concordava com ela senão não havia poker para ninguém. O meu tio Joseph achava que "Ser um oporrtunidade fantástico parra Porrtugal" a minha tia não fazia a mais pequena ideia do que era a CEE e o meu primo Carlos não sabia, não queria saber e tinha raiva de quem soubesse. Eu sabia, que o António tinha-me explicado, um dia enquanto o ajudava a limpar os estábulos, depois de termos "rebolado" na palha ele contou-me tudo sobre o que era essa coisa do mercado único e da união dos países, e assim ao jantar surpreendi a minha avó que até "O menino vê-se que afinal não é tão tontinho como eu pensava. Veja bem Carlos, e siga o exemplo do seu primo, que a vida não é só motos, futebol e raparigas." Nessa noite ia rebentando, não pela quantidade de comida que a Cremilde me tinha posto no prato mas porque foi a primeira vez que a minha avó me elogiara até então.

No dia seguinte logo de manhãzinha, véspera de Natal, desejoso de dar nas vistas de novo, lá vou eu direito ao quarto de hospedes ter com o tio Augusto para falar mais um pouco da tal de CEE. Bati à porta e como não tive resposta entrei, ele estava no banho e enquanto esperava fui folheando umas revistas que ele tinha em cima da cama. uma delas chamou-me a atenção, e de tal maneira que não o ouvi nem ao entrar nem quando falou comigo e apanhei um susto de morte quando me tocou no ombro e disse "Estou a ver que gostas da Bent! Se quiseres podes ficar com ela que eu tenho mais uns números! Ou preferes ao vivo e a cores?". Fiquei branco de morte, não sabia para onde olhar, se para a revista onde dois rapazes se envolviam em algo parecido com luta greco romana sem roupa ou se para o roupão aberto do tio Augusto.

É claro que depois do embaraço inicial lá me resolvi pelo real que o papel nunca alimentou ninguém.

É claro que ouvimos um raspanete por chegar tarde ao pequeno almoço mas também não fazia mal que eu já tinha bebido leitinho.

O Jantar da consoada correu como seria de esperar, as couves, o bacalhau e seus acompanhantes, o galo, as castanhas, os bolos, os pudins, um dedal de vinho para os rapazes (eu e o meu primo Carlos) e comer e beber até mais não. Que se comemorava o aniversário do "Nosso Senhor Jesus Cristo".

A coisa entornou com o presépio, já que o Augusto achava que estava todo desproporcional. E vai dai começou no gozo que ele tal como eu também não achava grande piada aquilo, e que a Virgem e o Marido eram maiores que a igreja, e que os ovelhas maiores que o pastor, e que as figuras eram maiores que o casario.

Pronto. Por esta altura já o meu avô tinha saído, o meu tio, tia e primo encolhido a um canto, a Cremilde e a Isilda fugido para a cozinha, eu ria-me a bandeiras despregadas e a minha avó passava por todas as cores do arco-íris até explodir num esgar de "Vocês os dois são mesmo feitos do mesmo ramo. Vamos embora que está na hora da missa, e já que vos desagrada tanto o presépio escusam de vir, podem ficar ai que este ano nem morta deixo que recebam as graças do Menino Jesus" e dito isto sai porta fora com a comitiva em seu alcanço e lá ficamos nos os dois a rir a bandeiras despregadas.

É claro que a parvoíce em volta do presépio continuou, desde a abertura que a virgem devia ter para parir um menino daquele tamanho, até acabar na pilinha do Menino Jesus e por conseguinte noutras pilinhas.

Ficámos os dois à lareira do quarto de hospedes, enrolados numa manta a ouvir o Bobby Helms a cantar o Silent Night, aquela que a minha avó considerava a mais bela melodia do Natal. E foi assim que nesse ano não fui à missa. Infelizmente. Para o galo.

E como o prometido é devido, este post é dedicado a M.
Feliz Natal.

3 comentários:

Markus disse...

Otima a descrição... Riqueza de detalhes é sempre encantador.
Não pude deixar de lembrar de minhas memórias também...
Forte abraço e sucesso constante!

João Roque disse...

Uma forma muito "apetitosa" de festejar o Natal; adoro a tua forma de transcrever o passado e retratar situações vividas; parabèns e já agora um feliz Natal.
Abraço.

M0rg4n disse...

heyas ;) Feliz ano novo!